Talvez este seja um
dos 4 modelos que mais demandará linhas neste blog pois, historicamente, o
modelo de “conflito” é o entendimento mais significativo da relação entre
ciência e religião, muitas vezes colocado até como “guerra”. Mesmo
que seu apelo tenha diminuído consideravelmente em um nível mais acadêmico o
modelo de conflito continua a ser profundamente influente no meio popular. Há
quem defenda que este tipo de interação seja, não só inevitável, mas inerente à
relação ciência e religião.
Dois historiadores do
final do século XIX levam os créditos pela popularização dessa abordagem. São
eles:
- John
William Draper (1811-1882) – médico, químico e historiador, fundador da
Escola de Medicina da Universidade de Nova Iorque -> obra: A história
do conflito entre religião e ciência (1874).
- Andrew
Dickson White (1832-1918) – historiador, cofundador da Universidade
Cornell -> obra: A história do conflito entre a ciência e teologia na
cristandade (1896).
Entretanto, o
historiador da ciência Ronald Numbers diz que “essa guerra existe principalmente na mente de historiadores dados a
clichês”. Diz ainda, com base em relatos de antigos historiadores da
ciência, que Draper e White mais fizeram propaganda do que história (NUMBERS,
2020). O problema é que esta mensagem raramente sai da “torre de marfim”, o
famoso espaço intelectual deliberadamente desvinculado do mundo cotidiano.
Assim, resta que as
pessoas não religiosas “sabem” que religião organizada sempre se
opôs ao progresso científico (visto nos ataques a Galileu e Darwin, por
exemplo). Já o público religioso “sabe” que a ciência liderou a
derrocada da fé e matou Deus (por meio do naturalismo e antibiblicismo). E é
justamente esse o intuito de Numbers no recente lançamento da Thomas
Nelson Brasil em parceria com a ABC2,
o livro intitulado “Terra
plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião”, que
contou com a colaboração de diversos professores e historiadores (entre
religiosos cristãos, judeus, islâmicos, bem como agnósticos e ateus) para
desconstruir alguns mitos e falsas afirmações que tanto contribuíram para o
sucesso da sensação de conflito entre ciência e religião. Este
livro é imprescindível para quem quer conhecer um pouco mais sobre esse campo do
conhecimento.
Um
dos mais conhecidos representantes e entusiastas desta postura bélica é o
Biólogo evolutivo RICHARD DAWKINS.
Para ele, ciência e religião são
implacavelmente opostas. Embora Dawkins seja o mais conhecido representante
dessa abordagem e ser um ateu militante (Luiz Felipe Pondé o chamaria de Ateu Toddynho,
se referindo àqueles de postura chata e arrogante), Alister Mcgrath,
químico, biofísico e teólogo, uma dos maiores estudiosos recentes das interações
entre ciência e religião, diz que esse modelo não se restringe a cientistas
antirreligiosos (não só ateus, mas antirreligiosos), sendo este
posicionamento de repulsa também muito comum em grupos religiosos (e aí podemos aplicar o mesmo conceito de
Pondé, o de Religioso Toddynho). Não são raras as declarações que colocam o
evolucionismo moderno, por exemplo, como a continuação da longa guerra de
Satanás contra Deus.
O
físico brasileiro Marcelo Gleiser tem uma postura totalmente diferente. Ele argumenta
que a “guerra” entre ciência e religião é fabricada.
Sobre religiosos bélicos, Gleiser diz: "Eles consideram a ciência como o inimigo, porque têm um modo muito
antiquado de pensar sobre ciência e religião, no qual todos os cientistas
tentam matar Deus", disse. "A ciência não mata Deus", ele completa.
Gleiser, agnóstico, ganhador do Prêmio Templeton devido ao seu olhar
conciliador, lamenta que os "novos ateus" tenham ampliado a distância
com a religião, especialmente o cientista britânico Richard Dawkins.
O problema é que,
apesar de suas confusões epistemológicas acerca de fato e ciência recentemente
expostas nas redes sociais, Dawkins influenciou e até hoje ainda influencia
muita gente. Não questiono sua capacidade e qualidade científica, mas sua
postura enquanto divulgador de ciência, em que a agressividade desproporcional pode
atrapalhar e afastar mais do que agregar. Recentemente, o efeito negativo de
Dawkins para o amplo debate que envolve Ciência e Religião foi demonstrado
estatisticamente por Unsworth e Voas (2021).
O fato é que a Tese do
Conflito é mais uma ideia que vive e se fortalece em uma bolha, que pode estar prestes
a estourar. Para a Dra. Jennifer Wiseman, astrofísica sênior da NASA, muito do
que aparece hoje como conflito, ou que é assim descrito, está no campo da
antropologia e das ciências sociais. Já McGrath, diz que o que mantém o modelo
de conflito são questões muito específicas inseridas nas ciências naturais,
principalmente o ensino de evolução nas escolas e questões de modificação
terapêutica de genes.
É importante saber
que o maior mito na história da ciência e religião é de que elas estão em
constante conflito. É saudável e honesto para o debate perceber e reconhecer
que o conflito não é a única maneira de relacionar ciência e religião. Por fim, existem cientistas que vão
além do conflito. O já citado Marcelo Gleiser é um ótimo exemplo de influência
com perspectivas menos (ou nada) combativas, que promovem a independência, o
diálogo ou a integração entre estes dois campos da realidade humana, bem como os
também já citados Jennifer Wiseman e Alister McGrath, e vários outros como
Francis Collins, Andrew Briggs, Malcolm Jeeves, Débora Haarsma, o saudoso Sir John
Polkinhorne, o brazuca Roberto Covolan, e tantos outros.
Referências:
BARBOUR, Ian. G. Quando a ciência encontra a religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.
GARROS, T. Ciência e Religião em
Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – Parte 1. 2017.
Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/ciencia-e-religiao-em-perspectiva-parte-1/.
Acesso em: 28 fev 2021.
MCGRATH, A. Ciência e religião:
fundamentos para o diálogo. Tradução de Roberto Covolan. - 1. Ed. – Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 352 p.
NUMBERS, RL. Terra plana, Galileu na
prisão e outros mitos sobre religião e ciência. Tradução de Aline Kaehler – 1.
Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 336 p.
UNSWORTH, A.; VOAS, D. The Dawkins effect? Celebrity scientists, (non)religious publics and changed attitudes to Evolution. Public Understanding of Science, 1–21, 2021. DOI: https://doi.org/10.1177/0963662521989513
WISEMAN, J. Entrevista. In: A ciência não prova Deus, mas enriquece a fé de quem acredita: uma entrevista com Jennifer Wiseman. Gazeta do Povo, ed. 30 mar 2019. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/tubo-de-ensaio/entrevista-jennifer-wiseman/ Acesso em 14 Mar 2021.
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